domingo, 22 de março de 2009

Educação paulista é vítima de auto-sabotagem em favor do ensino privado

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A educação do estado de São Paulo, teoricamente o mais expressivo pólo de formação cultural do país, está no olho do furacão das críticas há muitos anos. A qualidade da rede de ensino sofre franca e escancarada decadência nas últimas gestões e para discuti-la o Correio da Cidadania conversou com o professor e ex-diretor do sindicato da classe João Kleber Santana.

Também docente da rede pública (hoje da municipal, mas com passado na estadual), Santana denuncia que a recente prova a que foram submetidos os professores dos ensinos fundamental e médio, cujos resultados tiveram ampla e negativa repercussão, não tinha objetivos administrativos e nem técnicos. Como pano de fundo, aponta uma sorrateira intenção em desvalorizar a rede pública e seus respectivos profissionais.

De acordo com suas palavras, tal auto-destruição de nosso ensino público mostra também a falta de senso republicano das últimas gestões tucanas, que estão no poder há 15 anos. E para tirar da lama o ensino paulista, o professor afirma que é necessário um plano de longo prazo que passe pela valorização da carreira e da autonomia do professor.

A íntegra da entrevista pode ser conferida a seguir.

Correio Cidadania: A mais recente prova do Estado de São Paulo para docentes da rede pública – do ensino médio e fundamental - mostrou resultados que tiveram repercussão bastante negativa. Tal fato, atrelado a outros não muito distantes no tempo, como as greves e a crise das merendas, significa que nosso ensino público se encontra em que condições?

João Kleber Santana: De abandono. Principalmente dos educadores. No caso da prova, onde se tem quase metade da rede de professores como não-efetivos, mas temporários, eles se submeteram a um exame meramente classificatório, que não significava efetivação. Ao menos demonstrou a intenção da administração.

Ela, a administração, tem de dar a motivação, o exemplo, pois possui um papel de liderança sobre aqueles que dirige. E o papel que a administração exerceu foi o de desqualificar os profissionais que a escola gerencia, portanto, uma auto-desqualificação.

Ao invés de apresentar uma política de pessoal, de médio e longo prazo, consonante com as metas que se propõem na educação, o que se fez foi um absurdo. Todas as pessoas que participaram da elaboração, implantação e divulgação dessa prova, da qual participou um grande número de professores, deveriam ser demitidas. A prova foi feita não só por aqueles que já trabalhavam como temporários, mas também por gente que gostaria de ingressar na rede estadual, além de curiosos.

E o Estado divulgou um número de professores que tirou nota zero que incluía aqueles que não foram fazer a prova. O professor que não compareceu à prova não tirou zero, apenas não foi avaliado. Portanto, a divulgação desse exame da forma como foi feita demonstra má fé da gestão, que não possui uma política de pessoal definida, que valorize o servidor. Tudo isso demonstra o que eu disse: a educação se encontra em situação de abandono.

CC: Como têm sido os processos de formação dos professores e seu acompanhamento por parte do Estado?

JKS: Sou professor da rede pública municipal. Já atuei por um bom tempo na rede estadual, mas não tenho acompanhado de forma mais sistemática. Porém, em geral o que se observa é pouco caso e pouca fiscalização, por exemplo, na formação inicial do professor, com universidades que não poderiam de maneira nenhuma estar trabalhando nesta área, além de cursos aligeirados. Assim, a formação inicial do educador é precária.

E no campo da formação continuada, o máximo que o Estado tem feito é uma formação também aligeirada - quando ela ocorre. Nas poucas vezes em que houve uma formação sistemática foi em momentos nos quais o Estado recebeu empréstimos externos, porém, com poucos investimentos diretos da própria administração nesse quesito da formação continuada do professor.

Além do mais, ultimamente tem havido o que eu chamaria de ‘desformação’ dos professores - nisso o Estado tem investido. Temos percebido, por exemplo, o uso de cartilhas, numa tentativa de homogeneização dos conteúdos da rede. Pode ser bom ou não, desde que mantenha a autonomia do professor, estimule a atividade, a maneira de ensinar. No entanto, o que se tem feito é simplesmente tentar dirigir o trabalho da sala de aula.

A rede estadual tem mais de 100 mil escolas, distribuídas em todos os municípios, nas periferias e regiões centrais, portanto, não há como melhorar o rendimento através dessas tentativas de homogeneização do processo. Apenas reforçarão as regiões que já possuem um bom rendimento e se forçará para baixo o desempenho na outra ponta. É certamente esse o modelo de gestão que está sendo adotado.

CC: Sendo assim, têm razão aqueles especialistas da área que condenam a falta de vínculo entre professores e escolas, uma vez que sua contratação, distribuição, transferência, entre outros, seriam feitas através de critérios meramente impessoais.

JKS: É um pouco mais complicado, eu diria. Tem que haver critérios objetivos quando se fala de uma rede com mais de 200 mil pessoas, não dá para utilizar critérios meramente subjetivos. Por exemplo: São Paulo não tem Plano Estadual de Ensino há anos...

Digo isso porque se fosse feito algo do tipo ‘professores com melhores classificações escolhem as melhores escolas’ também se tenderia a acentuar aquela coisa de dar o melhor aos melhores e o pior aos piores. Assim, não há princípios mínimos de isonomia, eqüidade, no sentido de querermos educar com igualdade de condições para todos.

Nesse aspecto, não sou favorável a critérios meramente subjetivos. No entanto, os critérios pretendidos pelos sindicatos devem considerar alguns fatores. Um deles é o da experiência, falando de tempo de serviço. Qual o critério objetivo? Em tese, aquele que tem mais tempo de trabalho adquire melhor experiência. No entanto, políticas de valorização salarial e de melhor formação também seriam ótimas. Professores com mais tempo trabalham melhor e deveria haver uma possibilidade de escolha.

Critérios objetivos que significassem que o Estado decidiria para qual escola vai tal professor, com indicações, clientelismo, também não levariam a uma melhora da educação.

O problema é a intenção da gestão nesse momento. Ela aplicou uma prova que claramente tinha o objetivo de desqualificar o profissional que ela própria gere, que na prática é quem estará próximo ao aluno.

Desse modo, volto a insistir na incapacidade, ou falha gerencial, do próprio Estado para administrar a rede da qual ele é o responsável.

CC: E por que o Estado praticaria essa auto-sabotagem contra o seu ensino público?

JKS: Primeiramente, por falta de senso republicano, de proporcionar uma educação igualitária, de eqüidade, para todos os alunos da rede, respeitando o direito de todos a um bom ensino e formação.

Fora isso, a impressão que se dá é que também há interesse em valorizar a rede privada, opção que não está ao alcance de todos, como bem se sabe.

CC: O que pensa da execração promovida por diversos analistas espalhados pela mídia em relação ao professorado, por conta dos resultados do referido teste? Essas colocações deixam de lado o fundo do problema?

JKS: O que vejo é que os analistas sérios não vão por esse caminho, eles entendem mais profundamente o problema. No entanto, todos esses outros que estão espalhados e criticando os professores pelos resultados são pessoas ligadas ao ensino privado e, portanto, têm todo o interesse em desvalorizar a rede pública e tornar mais atraente a rede particular.

Quanto à aplicação da prova, considero que poderia ser analisada por dois aspectos: ao fazer uma avaliação para uma parte dos educadores, um dos objetivos seria manter a finalidade da educação; porém, da forma como foi aplicada, com objetivos meramente classificatórios, não atinge os objetivos maiores do ensino. A outra perspectiva que podemos analisar numa prova desse tipo seria do ponto de vista gerencial, ou seja, uma prova com finalidade administrativa. Só que tampouco serviu a tal propósito, que seria o objetivo de tirar os professores da rede estadual da situação de temporários.

Uma perspectiva gerencial séria levaria em conta uma política educacional de longo prazo, e não só uma forma diferente de contratar profissionais em situação temporária.

Quando faço as críticas ao estado de São Paulo, lembro que a lei das contratações de temporários é da década de 70, ou seja, tem sido utilizada há mais de 30 anos; uma lei definitiva para contratações temporárias. Como o Estado justifica tamanha demora para a resolução de tal problema?

Se formos analisar a administração tucana, do PSDB, ela já esta há 16 anos no governo estadual. E mesmo com os governos Quércia e Montoro tendo gerenciado antes, há uma linha de continuidade nesses partidos. Portanto, eles têm uma responsabilidade de mais de duas décadas na direção da educação paulista. As crianças que têm sido formadas são de total responsabilidade desse governo.

Não dá para discutir seriamente do ponto de vista dos objetivos de uma educação pública, laica, gratuita, republicana. Do ponto de vista gerencial, o único que se constata é a desqualificação da rede pública para ampliação da rede privada, ou a mera incompetência da gestão, o que me parece de fato o problema, com a colocação de pessoas que não têm compreensão do tamanho de uma rede de ensino como a desse estado.

CC: Por fim, que medidas deveriam ser tomadas para que se comece a transformar o quadro de nossa educação e voltar a moralizá-la diante dos pais, alunos e sociedade, e para uma verdadeira evolução em sua qualidade?

JKS: São várias questões, mas a primeira seria a construção do plano estadual de educação, coisa que São Paulo não tem há muitos anos. Isso de forma democrática e participativa, o que significaria o envolvimento da sociedade em sua elaboração.

Porém, teria de envolver aqueles que de fato têm compromisso com a administração pública, ou seja, pais, alunos, profissionais, e até mesmo a administração, através de uma ampla discussão e um processo mais preocupado com a qualidade que com a velocidade. Demoraria certo tempo, mas tal plano precisaria de uma visão de longo prazo, o que significa mais de um governo, mais de 10 anos. Essa é uma medida geral que eu encaminharia.

Do ponto de vista mais imediato, sugeriria a criação por parte da Assembléia Legislativa de cargos para servidores públicos e a realização de concursos, para que os educadores saiam da situação de temporários para servidores do estado.

Outras medidas seriam a criação de planos de carreiras, valorização salarial, políticas de formação, capacitação e avaliação sem objetivos apenas classificatórios, mas que analisassem os problemas e propusessem soluções, uma vez que a mídia apresentou os dados de forma duvidosa. A prova envolveu mais de 200 mil pessoas e todo o debate girava em torno dos resultados dos 3000 que tiraram nota zero, sendo que muitos nem compareceram à prova, embora tenham se inscrito nela.

Fonte: Gabriel Brito - Correio da Cidadania

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