quinta-feira, 19 de novembro de 2009

O ESVAZIAMENTO TECNOLÓGICO DO ESTADO

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ÁLVARO RODRIGUES DOS SANTOS

Órgãos públicos que antes eram verdadeiras escolas de engenharia hoje são meras estruturas burocráticas sem consistência técnica

OS NOVOS e positivos patamares do crescimento nacional encontram o poder público planejador, contratante e fiscalizador abalado por fenômenos estruturais recentes que muito o fragilizaram tecnológica e gerencialmente para o cumprimento dessas essenciais atribuições.

O processo de privatização de empresas públicas nas áreas de energia, telecomunicações, transporte e infraestrutura em geral, sobretudo nos anos 1990, trouxe a dissolução de equipes técnicas de altíssima capacitação e experiência constituídas nessas empresas ao longo de décadas.

Esse processo levou também a uma temerária fragilização tecnológica de toda uma cadeia empresarial privada mobilizada por contratação das estatais e implicada na produção de estudos e projetos, na implantação dos empreendimentos e no fornecimento de insumos gerais, equipamentos e componentes.

Não se está aqui colocando o processo de privatizações em questão, mas focando uma decorrência que, provavelmente, não foi devidamente considerada.

Essas equipes técnicas, formadas no âmbito da implantação de empreendimentos da mais alta complexidade tecnológica nas décadas de 1950, 1960 e 1970, contando com o entusiasmado e estratégico apoio de instituições públicas de pesquisa tecnológica do país, foram responsáveis pelo desenvolvimento de uma engenharia nacional aplicada às características econômicas, sociais e fisiográficas próprias de nosso país, guindando-a ao nível da melhor engenharia do Primeiro Mundo.

De outra parte, as várias empresas privadas brasileiras de consultoria, projetos e serviços em engenharia que se formaram a partir das demandas das empresas públicas constituíram suas próprias equipes técnicas, respondendo induzidamente ao mesmo patamar de qualidade.

Do ponto de vista da capacitação tecnológica da administração pública contratante, cumpre lembrar que, nos órgãos da administração direta, o processo de enfraquecimento tecnológico -no caso, dentro de uma outra, mas também perversa lógica- começou ainda nos anos 1950.

De sua decorrência, órgãos públicos que, no passado, constituíram-se em verdadeiras escolas da engenharia nacional, hoje não são mais que meras estruturas burocráticas contratantes sem nenhuma consistência técnica.

Ao analisar o processo de esvaziamento tecnológico da administração pública direta e indireta, é fundamental considerar o especial e estratégico papel do poder público contratante e fiscalizador como indutor da qualidade das empresas contratadas e mobilizador da empresa nacional fornecedora de projetos, serviços e insumos.

Sem a devida competência sequer para as indispensáveis interlocuções tecnológicas entre contratante e contratados e para a posterior fiscalização técnica dos serviços, a administração pública perde progressiva e rapidamente competência em planejar, priorizar e decidir sobre a implantação de empreendimentos e serviços públicos essenciais ao seu desenvolvimento técnico e econômico.

Bom lembrar que cabe ao Estado contratante a missão de fixar, já nos termos licitatórios, as linhas e concepções tecnológicas básicas que mais interessarão ao país no que se refere ao aproveitamento máximo de suas vantagens comparativas e de sua estrutura empresarial.

Perde-se a autonomia dessa decisão quando se perde a competência técnica para defini-la.

Essas responsabilidades estratégicas e próprias do Estado não são, como ingênua e irresponsavelmente podem pensar alguns, transferíveis para o setor privado contratado.

A área privada é compreensivelmente administrada sob outra lógica, em que soam estranhas as funções públicas de verificação, exigência e defesa permanente dos interesses maiores da sociedade.

As consequências negativas desse fenômeno são graves e podem ser facilmente imaginadas nos âmbitos social e econômico -ou até no âmbito estratégico da segurança nacional (perda de "intelligentsia").

Que ao menos os recentes acidentes em obras de engenharia possam servir para que governo e empresa, assim como a engenharia nacional, por meio de suas entidades, discutam e reflitam sobre essas questões. Sem partidarismos, com a disposição que a defesa desse estratégico patrimônio tecnológico tão nobremente construído exige.

ÁLVARO RODRIGUES DOS SANTOS , geólogo, é consultor em geologia de engenharia, geotecnia e meio ambiente. Foi diretor de Planejamento e Gestão do IPT (Instituto de Pesquisas Tecnológicas) e diretor da Divisão de Geologia. É autor, entre outras obras, de "Geologia de Engenharia: Conceitos, Método e Prática".

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