domingo, 20 de setembro de 2009

Incapaz de gerenciar a saúde, governo paulista inicia seu desmonte definitivo

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No início desta semana foi aprovado na Assembléia Legislativa de São Paulo (Alesp) o Projeto de Lei Complementar (PLC) 62/2008, que permite a entrada das chamadas Organizações Sociais na assunção de diversos serviços da área de saúde. A nova legislação vai de encontro à tendência de entrega dos hospitais públicos à iniciativa privada, como já mostrado pelo Correio, política que tem marcado a gestão tucana no Estado desde os anos 90.

Repelido por entidades da sociedade civil, trabalhadores e sindicatos do setor, o projeto contou com todo o apoio da base governista, sendo aprovado por 55 votos a 17 contrários, que foram contabilizados pelas bancadas do PSOL, PC do B e PT. Na visão, ao menos declarada, dos entusiastas do projeto, a entrada de ditas entidades aumentará a eficiência dos atendimentos, o acesso e até mesmo o rendimento dos funcionários, mesmo diante do fato de que estes passarão a gozar de estabilidade zero e terão seus direitos trabalhistas reduzidos.

Em suma, discurso idêntico ao de todas as demais privatizações e terceirizações em estradas, telefonia, energia, ainda que com a plena constatação do público acerca da precarização nas condições de trabalho, da queda de qualidade no serviço e do aumento exorbitante de tarifas, a exemplo da explosão das tarifas de pedágios em estradas construídas pelo Estado.

"A aprovação do projeto preocupa, pois se fala em ampliar a atuação das OS no estado, mas antes esse sistema precisava ser repensado, melhorado e principalmente ser mais fiscalizado e transparente", disse ao Correio a promotora pública Ana Trotta Yarid, que entrará com Ação de Inconstitucionalidade contra o projeto. "A lei não visa aprimorar nada, apenas abrir caminho para a entrada das organizações", completa.

Preocupação justificada

Os perigos alertados pela procuradora possuem motivos de sobra para se justificarem. Em 2008, CPI promovida pela Alesp encontrou altíssimos indícios de irregularidades e malversação do dinheiro público. O parecer de Raul Marcelo aponta uma série de irregularidades denunciadas à CPI nos contratos com as OS. Nas visitas que fez a sete unidades das 13 geridas até então por OS, o deputado verificou a precarização dos contratos de trabalho; utilização de equipamentos de unidades públicas de saúde por entidades privadas, caso do Conjunto Hospitalar de Sorocaba; contratação de serviços prestados por empresas ou pessoas físicas ligadas a OS nas unidades geridas por estas; privatização de áreas-fim das unidades, como laboratórios, especialidades de maior complexidade (neurocirurgia, nefrologia, hemodiálise) e farmácias.

"Estou indo ao Hospital Brigadeiro e a cada vez há menos pacientes, inclusive o médico com quem trato já foi também transferido e, segundo informações que obtive de funcionários, até dezembro o hospital estará nas mãos de uma empresa terceirizada", contou ao Correio a leitora e paciente do hospital Maria Aparecida Alves (ver matériaa respeito do desmonte das clínicas do Hospital Brigadeiro).

No discurso, tanto governo como mídia não se cansam de reverberar que tais entidades não possuem finalidade lucrativa. No entanto, foi aprovada emenda que abre 25% dos atendimentos do SUS para os planos de saúde privados, medida de claro viés mercadológico e arrecadatório. "Além de contrariar o princípio do SUS, pois esses 25% não serão de todos, o pior é que isso já poderia ser feito pelo governo, que sempre teve a possibilidade de cobrar dos planos pelos atendimentos de que esses utilizaram na rede pública, pois já existe legislação para isso", lembra a promotora.

Se realizasse tal cobrança, o governo realmente ganharia um incremento na receita da saúde que muito poderia impulsionar a melhora e ampliação de toda a rede estadual. Em entrevista à Rádio CBN, em fevereiro deste ano, o secretário do Tribunal de Contas do Estado de São Paulo, Ismar Barbosa Cruz, afirmou que a dívida dos planos de saúde com o SUS é de "no mínimo, 4,3 bilhões de reais".

Tal revelação já parece suficiente para que novamente fiquemos ressabiados com o famoso custo/benefício de mais uma política privatista do governo Serra. Contra a vontade da sociedade organizada e trabalhadores, conta com o apoio sempre afinado da mídia. Em seu editorial de primeiro de setembro, a Folha de S. Paulo recorre ao já surrado método de substituir a argumentação pela rotulação. Termos como ‘resistência estatal’, ‘enfadonha querela ideológica que opõe adeptos de uma concepção passadista e corporativista do Estado (...) que ameace seus feudos sindicais’ e por aí afora. Fazem falta, entretanto, exemplos de experiências anteriores com comprovado retorno social.

Salta aos olhos também a ausência da mais simplória menção a um de nossos primeiros artigos constitucionais, que sublinha a universalidade do acesso à saúde. Para o leitor desavisado, parece uma boa confluência de intenções um governo declarando que seu novo projeto qualificará o setor, enquanto a mídia formadora de opinião o avaliza euforicamente. Mas nessas horas é bom lembrar que nas últimas eleições governamentais, as que definiram a vitória de Serra, em todo o país foram doados cerca de R$ 7,2 milhões às campanhas eleitorais por parte de planos médicos. E que a Folha de S. Paulo tem a Golden Cross entre seus anunciantes.

No pleito que elegeu o atual governador, pode-se verificar através do site asclaras.org, parceira da conhecida ONG Transparência Brasil, que diversas empresas do ramo da saúde fizeram suas contribuições ao tucano. A Preslaf Emp. e Serv. Hospitalares repassou R$120 mil; o Hospital das Clínicas de... Niterói (!) 180 mil; as redes Drogasil e Raia 30 mil cada; já a Federação das Unimeds de São Paulo, entre todos os seus contemplados, distribuiu R$2 milhões. Não à toa já existe em nosso ‘politiquês’ a denominação ‘bancada da saúde’, grupo que envolve parlamentares patrocinados em suas campanhas por tais empresas.

(Na extensa lista de doadores do governador há empresas de diversos ramos mancomunados com as políticas tucanas, entre elas diversas consultorias e similares; uma delas, a Far-Fator, foi processada e condenada em 2004 por usar informação privilegiada na compra e venda de ações à época da privatização da COPEL – Companhia Energética Paranaense. Para se reabilitar diante da sociedade, a empresa ofereceu um termo de compromisso com a singela proposta de "cessação de ilícito". Considerando inaceitável, o diretor-relator da CVM Eli Loria rejeitou a idéia e ordenou que a justiça encaminhasse o processo)

Vale lembrar que o fim das OS foi proposto pelos Conselhos Estadual e Nacional de Saúde e a lei que criou as Organizações Sociais (9.637/98) sofre questionamentos até no Supremo Tribunal Federal, onde tramita ação direta de inconstitucionalidade (Adin 1923/98) contra o modelo de gestão há 11 anos. Já o sub-relatório do deputado estadual Raul Marcelo (PSOL), denunciando irregularidades na saúde estadual, foi aprovado por unanimidade.

Escala nacional

Se o estado de São Paulo já está condenado a entregar sua saúde ao que a CPI dos gastos do setor qualificou como ‘porta aberta à corrupção’, o país deve se preparar para o mesmo. Está em tramitação também o PL 92/07, que significa o mesmo do PLC 62/2008, porém, em nível federal. "A questão central das OS é a falta de transparência, de controle público e a inexistência de licitações. Existe margem para desvios de todos os tipos", já dissera anteriormente ao Correio o deputado estadual.

Os movimentos e trabalhadores contrários ao PL já realizaram algumas manifestações e audiências com parlamentares a fim de tratar do assunto. "Há casos em que se perde de vista quem é o responsável pela contratação de um determinado serviço, porque a terceirizada contrata outra empresa, que subcontrata uma quinta, e por aí vai. Esse sistema é uma verdadeira draga de recursos públicos", opina Ivan Valente, deputado federal pelo PSOL-SP.

"Já temos dificuldades de gerenciar a saúde do jeito que ela está, e ainda querem ampliar essa política, sendo que o governo não investe na aparelhagem que melhoraria a fiscalização. As pessoas não entendem que quem não pode pagar plano de saúde precisa do SUS. E que planos de saúde também quebram", assinalada Ana Trotta.

Caos clientelista

Sem a garantia de concursos públicos para preenchimento de cargos e com o governo dispensando abertamente a necessidade de licitações, faz sentido, pelo menos dentro de uma visão republicana, toda a carga de preocupação de setores contrários à nova lei. "Agora a fundação da USP quer assumir o Emilio Ribas. Com as dificuldades que eles já têm no Hospital das Clínicas, certamente transferirão muitos tratamentos diferenciados para cá, superlotando nossas dependências", conta Vera, funcionária do laboratório do Instituto de Infectologia Emilio Ribas.

"O diretor caiu, houve uma precarização enorme nos exames e o laboratório piorou com a terceirização. Até a UTI foi deslocada para lá. Agora os resultados de exames infectológicos passaram a sair só no final do dia, quando antes levavam duas horas", relata. "Pra completar, os próprios médicos reclamam disso e os funcionários do laboratório têm receio de liberar os resultados por medo de imprecisão. O deslocamento de pessoas e o sucateamento já são claros".

"Relatório feito pelo DIEESE, a pedido dos sindicatos, mostra que saímos de 2004 gastando R$ 600 milhões com essas entidades e chegamos a 2008 gastando mais de R$ 1 bilhão. Em 2009, gastaremos o triplo desse valor, R$ 1,89 bilhão", informou Raul Marcelo na página de seu mandato.

"O governo precisa mostrar a situação ao público, pois deveria se preocupar em evitar o retrocesso da saúde, o que não interessa a ninguém. Além do mais, o Tribunal de Contas do Estado já apontou desvios nos montantes repassados pelo governo", revela a promotora.

Sua tese é endossada por Raul Marcelo. "Um governo que tem essa visão de gestão da saúde não merece confiança, por isso não vamos dar um cheque em branco a esse projeto, que, na nossa avaliação, não deixa claro que esses cargos serão criados por concurso público". "O que é necessário são políticas muito bem definidas para a saúde", finaliza Anna Trotta Yarid.

Gabriel Brito é jornalista.

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